Cansados da mesmice acadêmica e das regras rígidas que dominavam o mundo da arte no século XIX, um grupo de artistas decidiu romper com o estabelecido. Inspirados por mestres do passado, eles queriam algo novo e criaram o que muitos consideram a primeira vanguarda da arte moderna: o Impressionismo.
Liderados por nomes como Édouard Manet, Claude Monet, Pierre-Auguste Renoir, Edgar Degas e Berthe Morisot, os impressionistas buscavam capturar a impressão de um instante, os efeitos da luz, da cor e do movimento na natureza e na vida cotidiana. Em vez de detalhes precisos, queriam transmitir sensações.

“Eu gostaria de pintar como o pássaro canta.”Claude Monet
Entre eles, Claude Monet se destacou como um dos mais geniais. Seu estudo era tão intenso que ele podia pintar a mesma paisagem centenas de vezes, sempre com resultados diferentes. Porque, para ele, o que importava não era apenas o objeto, mas a sua visão do presente — um presente carregado de memórias, estudos, vivências, intuições e influências. Suas pinturas são como cápsulas de tempo, unindo o que ele foi, o que poderia ser e tudo o que herdou dos que vieram antes. E esse também é o tema central do quadrinho Ardalén.
Escrito pelo espanhol Miguelanxo Prado, Ardalén é uma gibi que mistura memória, imaginação e solidão. A trama acompanha Sabela, uma mulher que viaja para uma aldeia remota na Galícia, na Espanha, em busca de pistas sobre seu avô que teria emigrado para Cuba e abandonado sua família. Além disso, ela está em busca de algo maior: entender a si mesma por meio do passado.
Lá, conhece Fidel, um velho excêntrico e solitário, que vive num mundo onde memórias reais se misturam com lembranças inventadas — ou seriam memórias de outras pessoas? Mesmo com sua mente confusa, ele pode ser a chave para as respostas que Sabela procura.
Logo nas primeiras páginas, algo chama atenção. A maneira como Miguelanxo usa a sarjeta (o espaço entre os quadros) é diferente de muitos dos quadrinhos, em que a sarjeta costuma ser branca e regular. Aqui ela se adapta à narrativa, transformando cada página em uma espécie de quadro vivo. Os planos amplos, os ritmos lentos e a contemplação da natureza fazem o tempo parecer mais lento, como se o leitor precisasse respirar com a obra.

Ao longo das páginas o quadrinho começa a misturar documentos inventados com a narrativa da história, isso, além de dar uma noção de realidade para o que não é real, algo que o quadrinho faz muito, também agrega na mensagem construída por Miguelanxo Prado.
Um desses falsos artigos é “Não existe presente” nele a teórica Mercedes Prieto Dunwald mostra como o tempo, essa obsessão da humanidade, pode ser visto como um objeto matemático. Para ela o futuro é uma projeção, uma virtualidade, e está mais constituído de desejos, esperanças e intuição do que certezas. O passado é o que foi registrado na memória, no fundo é o único “estado” do tempo em que podemos, de alguma forma, abrigar a ilusão do “possuir”. Sendo assim, o futuro é importante para que tenhamos uma sensação de identidade e o passado é importante pois “somos” porque fomos, porque nos lembramos sendo. Mas onde fica o presente em todo este esquema? O presente é o ponto de inflexão dessas duas linhas, ele é o simultâneo entre o passado e o futuro.
Volto então a lembrar daquele que talvez fez a melhor representação do que é presente.

O livro “Monet e a Pintura das Ninfeias”, de Ross King, é uma obra que mergulha na fase final da vida e da carreira de Claude Monet, especialmente na criação de suas monumentais pinturas das Ninfeias. Ross King conta como, já idoso, quase cego e profundamente abalado pela morte de sua esposa e de seu filho, Monet se dedicou obsessivamente à criação dos grandes painéis das Ninfeias que hoje estão expostos no Museu da Orangerie, em Paris. O livro mostra como essas pinturas não são apenas belas paisagens, mas representam uma transformação radical na arte moderna: Monet, isolado em seu jardim em Giverny, rompe com a representação tradicional do espaço, do horizonte e até da forma, antecipando movimentos como o abstracionismo e o expressionismo.

Quando Monet finalizou suas ninféias viu o público da época rejeitar o quadro de imediato. Hoje sabe-se que essa repulsa veio por conta do quadro ser muito abstrato. Mesmo os vanguardistas olharam para a representação de Monet do seu lago particular e não enxergaram um lago, mas sim um borrão. Essa obra ficou esquecida por anos e só foi ser revisitada quando um grupo de nova-iorquinos que se identificavam como expressionistas abstratos, quase 60 anos depois, olharam para as ninféias de Monet e enxergaram alí uma referência.
Ao pintar suas ninfeias, Monet, racional ou irracionalmente, não registrava apenas a visão de um lago. Ele pintava o peso do tempo, a presença do que veio antes e do que ainda viria. A arte, para ele, não era linear, mas um grande espelho onde o passado e o futuro se refletem. É impressionante como isso ecoa em Ardalén — especialmente nos quadros que retratam a água, tema também presente nas últimas obras de Monet.
Ardalén e as Ninfeias falam, no fundo, da mesma coisa: o presente é algo precioso, denso e cheio de camadas. Ele é a confluência entre o que fomos e o que podemos ser. É nele que carregamos nossa história e todas as possibilidades do que foi e ainda virá.

