Artificação é um neologismo derivado do verbo “artificar” (to artify). O conceito foi um dos temas centrais no trabalho de Ellen Dissanayake, que, na minha visão, possui a abordagem mais interessante sobre o fenômeno. Para ela, artificação é um comportamento evolutivo e adaptativo: a arte não é algo separado do humano, mas uma necessidade biológica. Todos nós temos uma predisposição comportamental que se apropria do ordinário e o transforma, buscando comunicar algo que vai muito além de sua função original.
Dissanayake afirma que esse processo não ocorre apenas com o objeto artístico, mas também com quem o produz. A artificação do indivíduo nasce de seu conceito de que a arte está ligada a um impulso humano universal de “tornar especial” (making special). Assim, a artificação do artista acontece quando a sociedade reconhece em alguém a capacidade de realizar esse ato de tornar especial, atribuindo-lhe um status diferenciado dentro do grupo. Nesse processo, o artista se torna alguém que encarna de forma intensa essa capacidade, seja pela sensibilidade, habilidade técnica ou forma de expressão. Dessa forma, o indivíduo passa por uma artificação social: seus gestos, práticas e estilo de vida passam a ser valorizados como arte. Ou seja, não apenas os objetos ou eventos são artificados, mas o próprio indivíduo se torna “especial” aos olhos da comunidade.

A história da arte está cheia de exemplos dessa artificação social. Salvador Dalí praticamente se transformou em suas próprias pinturas surrealistas. Frida Kahlo, consciente ou não, tornou-se um outdoor vivo de sua arte. Há casos de artistas artificados após a morte: Vincent Van Gogh teve sua história tão atrelada ao mito do gênio fracassado que hoje é impossível olhar suas obras sem pensar na dor e na confusão mental que enfrentava ao pintá-las.
Esse conceito de artificação se tornou tão presente que hoje é raro encontrar artistas contemporâneos que não tenham se transformado em seu próprio trabalho. Jeff Koons, Ai Weiwei, Yayoi Kusama, David Hockney, entre tantos outros, mostram que, no século XXI, não basta ser artista: é preciso parecer artista.
Esse tema se conecta de forma poderosa ao excelente quadrinho “Fante Bukowski: Obras Completas”, de Noah Van Sciver. A obra conta a história de um jovem que sonha em ser um grande escritor, mas não tem talento, disciplina ou autocrítica. Ele larga tudo para viver como artista, acreditando que o sofrimento e boemia farão dele um gênio literário. Vive em motéis baratos, sempre bêbado, vestindo-se como um escritor atormentado e reclamando por não ser reconhecido. Entre tentativas frustradas de publicar seus textos, se afoga no fracasso e na frustração de forma cômica, sem perceber sua própria vaidade e mediocridade.

A obra acompanha suas leituras de poesia vazias, feiras de livros e interações com outros artistas igualmente perdidos, mostrando o contraste entre o desejo de glória e a incapacidade de esforço real. Com humor ácido, Noah Van Sciver constrói um retrato irônico e melancólico do artista frustrado, criticando a romantização do sofrimento artístico e revelando o lado humano de quem busca, desesperadamente, um lugar no mundo por meio da arte.

Visualmente, o traço de Van Sciver é expressivo e solto, com linhas aparentes que reforçam o tom cômico e melancólico. Sua paleta de cores limitada, em tons terrosos, cria uma atmosfera de decadência que combina com a vida desorganizada do protagonista. As expressões exageradas e os cenários repetitivos – bares, motéis, ruas vazias – reforçam a solidão e o fracasso de Fante. As páginas são quase sempre em nove quadros tornando a leitura ágil, equilibrando humor e momentos silenciosos com fluidez.
Em uma entrevista para o canal Malaprop’s Bookstore & Cafe, o autor resume bem a essência do quadrinho:
“Sempre visitei muitas feiras literárias por causa do meu trabalho… Olhando para alguns autores iniciantes, comecei a entender que a imagem de ser um escritor desesperado é mais importante para eles do que aprender a escrever bem.”
Essa frase imediatamente me faz lembrar do conceito de artificação de Dissanayake. Para Fante, parecer ser um escritor atormentado é mais importante do que realmente saber escrever. Ele quer tanto ser um bom escritor que muda até o nome para se aproximar de seus ídolos. Em diversos momentos, vemos como ele se preocupa mais com a imagem que projeta do que com o próprio ato de escrever. Até mesmo o seu sucesso não tem muito a ver com escrever bem mas sim ser reconhecido por escrever bem.

O roteiro de Van Sciver não poupa seu protagonista, expondo-o ao ridículo a ponto do leitor sentir pena dele. Mas, em um movimento sutil e poético, Fante começa a se transformar, deixando de querer parecer para, aos poucos, querer ser. O final do quadrinho é surpreendentemente poético, levando Fante a refletir sobre suas ações e sobre as pessoas ao seu redor.
O tema de Fante Bukowski não poderia ser mais atual. Vivemos em um mundo regido por Big Techs que lucram com a ideia de que “compartilhar é mais importante do que viver”. As redes sociais nos ensinam que hoje é mais importante parecer do que ser.
O fenômeno da artificação, que Dissanayake pensou inicialmente para a figura do artista, se aproxima cada vez mais de todos nós. Talvez a única forma de escapar desse ciclo seja fazer como Fante ao final da história: reconhecer nossa necessidade de atenção, mas, principalmente, aprender a enxergar o outro não como audiência para nossas aparências, mas como indivíduo que merece ser visto além dos algoritmos. Somente assim poderemos caminhar para algo maior do que apenas a aparência de existir.
“Fante Bukowski: Obras Completas” chegou aos leitores norte-americanos em três volumes, lançados originalmente em 2015, 2017 e 2018 pela editora Fantagraphics. No Brasil, a obra ganhou tradução de Fernando Paz e foi publicada em 2022 pela editora HQueria.




