Uma das primeiras coisas que reparei ao observar os quadros desenhados por Charles Burns no quadrinho Final Cut foram as texturas presentes na parte mais onírica da obra. Essas texturas me lembraram um dos artistas mais importantes para o Surrealismo: Max Ernst. Em especial, uma obra que me marcou profundamente na primeira vez em que a vi.
Bryce Canyon Translation foi criada em 1946, enquanto Ernst ainda morava na Alemanha. O quadro pertence ao acervo do MASP e mede apenas 51 cm de altura por 41 cm de largura e pode ser considerada uma obra pequena. Mas seu tamanho não diminui em nada a intensidade que transmite quando a observamos. O artista aplica ali diversas técnicas de textura que produzem uma estranha sensação de realidade em quem a contempla.

Max Ernst foi um dos artistas mais inovadores e influentes do século XX. Nascido em 2 de abril de 1891, em Brühl, na Alemanha, destacou-se como pintor, escultor, poeta e teórico da arte. Teve papel fundamental na formação de dois dos movimentos mais radicais da arte moderna: o Dadaísmo e o Surrealismo.
O Manifesto Surrealista, escrito por André Breton em 1924, é considerado o documento fundador do movimento. Nele, Breton define os princípios e objetivos do Surrealismo, buscando romper com os limites da razão e explorar os territórios do inconsciente, dos sonhos e da liberdade absoluta de pensamento.
Um ponto específico do manifesto sempre me fascinou: a rejeição do realismo tradicional e da moral burguesa. O Surrealismo se opõe à arte “útil”, didática ou moralista. Defende uma arte subversiva, que desafia os padrões sociais e culturais. Não quero soar absoluto, mas não é exagero dizer que todo surrealista era, em alguma medida, opositor do fascismo e do capitalismo.Sempre achei esse objetivo muito ousado e, olhando para o mundo atual, é difícil não pensar que os surrealistas falharam.
Vivemos um tempo apaixonado por figuras autoritárias; a democracia raramente esteve tão ameaçada. Max Ernst reconheceu essa falha em seu quadro O Triunfo do Surrealismo.

Na pintura, vemos um monstro que caminha pela terra sem se importar com o que há ao seu redor. Esse monstro é o fascismo, que consome e aniquila tudo o que toca. É essa a mensagem que Ernst nos entrega. Em suas próprias palavras:
“Eu fiz essa pintura após a derrota dos republicanos espanhóis.
É evidentemente um título irônico para designar algum tipo de animal que destrói e aniquila tudo em seu caminho.
Era a impressão que eu tinha, na época, do que aconteceria com o mundo — e eu estava certo.”
Olhando para a obra e para seu título, fica claro que Ernst está sendo irônico quanto à vitória do movimento que ele ajudou a criar. Aquilo não é um triunfo, mas sim um fracasso. Ernst nos mostra que as ideias revolucionárias do Surrealismo falharam.
Mas o que isso tem a ver com o quadrinho Final Cut?
Final Cut é uma graphic novel de Charles Burns que explora as angústias e obsessões do adolescente Brian Milner, um aspirante a cineasta. Ao lado do amigo Jimmy, Laurie e de Tina, ele decide filmar uma produção caseira de ficção científica. Inspirado em clássicos como Invasores de Corpos, o projeto acaba servindo como pretexto para Brian revisitar suas memórias e desejos reprimidos. Conforme a trama avança, ele começa a confundir realidade e ficção, mergulhando em uma espiral psicológica onde a fantasia e o desejo assumem o controle. A história, ambientada em uma cabana isolada, ganha uma atmosfera distorcida, quase onírica, que gera um clima crescente de desconforto.
O desenho de Burns evoca o melhor de Roy Lichtenstein, Jack Kirby e, claro, Max Ernst. As cores são fortes e a narrativa se equilibra com maestria na linguagem própria dos quadrinhos, que combina texto e imagem. Burns constrói um mundo com uma aura tão densa que parece palpável. Seus personagens conversam, mas raramente dizem o que os desenhos expressam. Essa dualidade cria uma sensação única de mistério e ansiedade no leitor.

A transição da infância para a vida adulta parece ser um dos temas favoritos de Charles Burns. Em Black Hole, sua obra mais conhecida, ele combina terror corporal, drama adolescente e metáforas viscerais sobre a sexualidade para abordar o desejo, o início da vida sexual e a rebeldia. Já em Final Cut, Burns usa esse mesmo recorte etário para tratar de outro tema: a decepção.
Brian Milner é um garoto que deseja controlar tudo — não por acaso, uma de suas paixões é fazer filmes, onde ele define os ângulos, os tempos e a edição. Mas esse desejo por controle começa a ser abalado quando ele conhece Laurie, uma adolescente por quem se apaixona. Laurie representa o completo descontrole para Brian, ele não pode controlar o que ela sente nem o que ele próprio sente sobre ela. Até mesmo os meios para conquistar o que deseja parecem confusos. Essa frustração gera ansiedade, e aos poucos ele perde a atenção, e o afeto, de Laurie. O resultado é uma separação de uma relação que, na verdade, nunca chegou a acontecer.

Essa necessidade de controle, e a consequente decepção por não conseguir dominar o mundo ao redor, ecoa a frustração de Max Ernst com o fracasso dos ideais surrealistas. Por mais poéticas que fossem, as ideias do Surrealismo expressavam, em parte, uma vontade masculina de dominar o ambiente. A decepção de Brian e a de Ernst são similares, mesmo que uma trate da geopolítica global e a outra de um amor frustrado na adolescência.
Essa decepção se manifesta na figura de um monstro que ronda a narrativa do quadrinho. A forma como Burns o retrata se assemelha muito à representação que Ernst deu ao “triunfo” das suas decepções. O mundo é muito mais complexo do que nossos desejos. Ernst criou um monstro e o chamou de fascismo. Burns criou outro e o chamou de necessidade de controle.
Será que os dois não são, no fundo, parte do mesmo problema? A necessidade humana — especialmente masculina — de controlar aquilo que, por natureza, não pode ser controlado?
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