O conceito de grotesco surgiu no final do século XV, quando escavações em Roma revelaram pinturas antigas em grutas subterrâneas. Essas imagens, que misturavam figuras humanas, animais e plantas passaram a ser chamadas de “grotescas”. Inicialmente ligadas a um estilo decorativo que unia o belo e o feio em formas híbridas e fantasiosas, essas figuras deixaram de ser apenas um ornamento e, ao longo dos séculos XVIII e XIX, transformaram-se em uma categoria estética.

Wolfgang Kayser, em O Grotesco: sua formação e seu significado (1957), entende o grotesco como uma experiência estética que provoca estranhamento e inquietação. Para ele, o grotesco não é apenas uma deformação cômica, mas revela o absurdo e o irracional presentes no mundo, criando a sensação de que o familiar se torna estranho. Kayser descreve o grotesco como uma fusão entre o cômico e o terrível, onde riso e medo se misturam, gerando uma ambiguidade que desestabiliza o espectador. Ele destaca ainda que o grotesco rompe fronteiras entre o humano, o animal e o inanimado, trazendo a metamorfose como uma de suas marcas centrais. O grotesco surge em momentos históricos de crise e perda de sentido, sendo expressão estética de um mundo que se revela caótico e incompreensível.
Historicamente, o grotesco sempre teve uma presença marcante nos quadrinhos, sobretudo nas caricaturas, que exageram traços físicos e comportamentais, transformando pessoas e situações em imagens ao mesmo tempo cômicas e perturbadoras. Nessas representações, o grotesco usa o riso como ferramenta de crítica, expondo o ridículo do poder, dos costumes e das vaidades humanas, ao mesmo tempo em que revela aspectos sombrios e absurdos da realidade. Charles Baudelaire, ao refletir sobre a caricatura, destacou que o grotesco nela não é apenas humor, mas também denúncia, revelando o trágico por trás do cômico.
Mas o que o grotesco tem a ver com o quadrinho Fiordilatte?

Fiordilatte, de Miguel Vila, acompanha Marco, um jovem que vive com Stella, sua namorada rica e popular. Apesar do afeto de Stella, Marco não sente atração sexual por ela e passa a questionar sua própria identidade. Sua vida muda quando conhece Ludovica, uma mulher mais velha, mãe solo de um bebê, que desperta nele impulsos desconhecidos e desafia suas percepções de desejo e afeto.
Ludovica não se encaixa em padrões de beleza, e Miguel Vila a desenha com formas exageradas, traços deformados e hábitos desleixados, aproximando-a da ideia de grotesco discutida por Kayser. Esses fatores, que a colocariam como pária aos olhos da sociedade, são justamente o que atraem Marco. Essa atração se torna ainda mais perturbadora quando percebemos que Marco sente tesão não apenas nos hábitos de Ludovica, mas principalmente no ato de amamentar.
Esse desejo por algo que transgride a moral é apenas uma das imoralidades exploradas por Vila. A fina camada que separa moral e imoral é um tema central na narrativa: a garota feminista que zomba da aparência da amiga, o menino que finge amizade esperando uma oportunidade de transar e o tesão de Marco ligado ao ato de amamentar. Esse último, aliás, está diretamente conectado ao consumo excessivo de pornografia pelo adolescente, mostrado em diversos momentos da história. Esse consumo alarga o conceito de prazer no cérebro de Marco: se antes ele se estimulava com imagens da sua namorada, agora isso não basta — ele precisa do grotesco.

A arte de Miguel Vila contrasta o indelicado com o delicado a todo instante. Os quadros pequenos, os espaços vazios entre eles e as cores suaves evocam o belo, enquanto a narrativa e os detalhes hiper-realistas retornam ao grotesco. Assim como Chris Ware, Vila alterna o tamanho e a definição de seus quadros, utilizando a ultra definição em prol do desconforto, detalhando corpos e gestos. Até o título Fiordilatte reforça esse contraste, já que o nome remete a doces feitos de leite e baunilha, criando um contraponto com os desejos sombrios explorados na trama.
Fiordilatte evidencia que o grotesco não é um elemento isolado ou distante, mas uma potência estética do cotidiano. Ele emerge na observação minuciosa dos hábitos, nas tensões afetivas, nos desejos que não cabem nos padrões morais e sociais, nos impulsos silenciosos que atravessam a rotina. A obra transforma o grotesco em ferramenta para tensionar a moralidade do leitor, obrigando-o a reconhecer no cotidiano aquilo que preferimos não ver: os desejos inconfessáveis, os impulsos contraditórios, a estranheza do corpo e a fragilidade das relações. Ao invés de apresentar heróis ou vilões claros, Vila constrói personagens ambíguos que habitam o grotesco de suas próprias vidas cotidianas, convidando o leitor a habitar, junto deles, esse espaço de desconforto.
Todos esses contrastes não são moralizados em nenhum momento por Miguel Vila, Marco não é condenado por assistir pornô e ter o cérebro corrompido, Stella não sofre por fazer bullying escondido e Lulu não parece sofrer por usar as fantasias de um adolescente ao seu bel prazer. Essa falta de uma narrativa que aponta certos e errados torna a vida do leitor muito mais difícil já que temos o hábito de tomar lados quando consumimos uma história. Talvez seja justamente essa a vontade de Vila, em um mundo onde os conceitos são cada vez mais esgarçados e os limites a toda a hora postos a prova fica difícil tomar lados — o que nos resta são apenas os contrastes.




