Ao ler Old Boy, não pude deixar de notar a semelhança entre alguns painéis do mangá e as obras do Período Azul de Pablo Picasso, uma das fases mais marcantes da carreira do pintor espanhol. Esse período começou logo após a trágica morte de seu grande amigo, o poeta Carlos Casagemas, que se suicidou em Paris. A perda de Casagemas foi um gatilho emocional profundo para Picasso, levando-o a mergulhar em temas como a dor, a miséria humana, a morte, o sofrimento e a incerteza como parte inevitável da existência.
Durante essa fase, Picasso se isolou, viveu em condições precárias e teve contato direto com pessoas marginalizadas, experiências que influenciaram diretamente os temas de suas obras. Essa ideia de um trauma desencadeando outro, o sofrimento de um homem despertando o de outro, resume bem a essência de Old Boy.
Old Boy teve duas publicações no Brasil. A primeira foi pela editora Nova Sampa, que lançou o mangá em oito volumes, entre 2013 e 2014. Já a segunda veio pela Comix Zone, que reuniu a obra em três volumes com tradução de Luis Linaneo, lançados em 2025.
Escrito por Garon Tsuchiya e ilustrado por Nobuaki Minegishi, Old Boy foi publicado originalmente no Japão entre 1996 e 1998, na revista Manga Action. A trama gira em torno de Shinichi Gotou, um homem comum que é sequestrado e mantido em cativeiro por dez anos sem qualquer explicação. Isolado em um quarto sem janelas, com alimentação regular e apenas uma televisão como companhia, Gotou se apega a um único objetivo: manter a sanidade. Para isso, mergulha em uma rotina intensa de exercícios e absorção de informação através da TV.
Então, de forma tão misteriosa quanto foi capturado, ele é libertado.
É a partir desse momento que a história ganha profundidade. O roteiro de Tsuchiya brilha ao apresentar constantes reviravoltas e uma série de personagens marcantes. Entre eles, Takaki Kakinuma se destaca como o mais fascinante. Responsável pelo cativeiro de Gotou, Kakinuma é um poderoso empresário que enriqueceu por meio da especulação imobiliária.
A dinâmica entre Gotou e Kakinuma é o verdadeiro motor da narrativa. Eles representam opostos complementares. Gotou se encaixa no ideal de beleza social: alto, forte e com uma presença impactante. Kakinuma, embora se exercite, tem uma aparência menos imponente. Essa oposição também é visível na forma como Minegishi os desenha. Gotou é frequentemente mostrado em ângulos retos, colocando-o em igualdade com o leitor. Já Kakinuma aparece em contra-plongée, um enquadramento de baixo para cima, ressaltando sua superioridade e poder.
Em um momento simbólico da história, vemos Gotou realizando trabalho braçal sob o sol escaldante, enquanto Kakinuma o observa à distância, confortavelmente instalado em um restaurante de luxo.
Essa assimetria se reflete não só no exterior mas também no interior dos personagens. Gotou, apesar de parecer o homem ideal, carrega dentro de si o peso do fracasso, do vício em jogos e álcool, e da tentativa frustrada de levar uma vida normal. Já Kakinuma, embora fisicamente mais frágil, encontra força em seu trauma e um propósito claro que norteia sua existência.
O objetivo de Kakinuma era quebrar a sanidade do protagonista no cativeiro. Mas, ironicamente, foi em liberdade que Gotou se viu mais perdido. Dentro da prisão, ele tinha uma meta clara: manter-se são. Fora dela, sem um propósito definido, é como se estivesse trancado em uma cela ainda mais complexa e opressora.
Em determinado momento, uma personagem faz a pergunta central da trama: “Como vai ser a sua vida depois disso?” A expressão desenhada por Minegishi diz tudo, Gotou não tem resposta. Ele não vê o próximo passo. E isso nos leva a uma reflexão inevitável: será que ele precisa de um objetivo para viver? Será que liberdade, para ele, só existe quando há um rumo? E será que é a incerteza sobre o futuro o que realmente o aprisiona?
Ao revisitar as pinturas do Período Azul de Picasso, tão presentes na atmosfera melancólica de Old Boy, me peguei com uma pergunta fundamental: O que se faz quando não há mais nada a fazer?
Picasso respondeu a isso da única forma que sabia, criando. Em meio a dor e a incerteza, ofereceu ao mundo algumas das obras mais sensíveis e profundas da história da arte. Gotou, por sua vez, encontra esse vazio não durante o cativeiro, mas ao sair dele. A história não nos entrega uma resposta para seu dilema, talvez porque a resposta não pertença ao final dessa história. Talvez ela pertença a nós.





