“Um dos devaneios em que o homem se compraz é o da impregnação das coisas pela sua vontade, da moldagem das formas, da penetração da subsistência delas.”
— Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo
Essa frase de Simone de Beauvoir aparece no livro O Segundo Sexo, publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira em um box que vive me encarando da minha estante. Ela se encontra no volume 1, Fatos e Mitos, no trecho em que a autora discute o mito do masculino como sujeito ativo e transformador do mundo. Nessa análise, Beauvoir mostra como a cultura patriarcal associa o homem ao papel de criador, conquistador, dominador da matéria, enquanto a mulher é vista como natureza, passiva e receptiva. O “devaneio” ao qual ela se refere é o desejo masculino de deixar sua marca no mundo, de impor sua vontade sobre a matéria e, por extensão simbólica e histórica, sobre a mulher.
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Beauvoir revela como esse padrão está presente em toda parte: nas religiões, nas filosofias, nas ciências, na arte. O homem é identificado com o espírito, a razão, a cultura; a mulher, com o corpo, a emoção, a natureza. Enquanto ele molda, penetra, transforma e conquista, ela é moldada, penetrada, transformada e conquistada. Esse jogo simbólico está longe de ser neutro: é um mecanismo que justifica o domínio masculino, que alimenta a fantasia de que o homem é quem dá sentido ao mundo.
É daí que nasce o mito. A mulher torna-se personagem da imaginação masculina: ora a virgem pura e intocável, ora a sedutora perigosa que arrasta o homem à perdição. Ela pode ser musa, mãe, feiticeira ou pecadora, mas quase nunca um sujeito em si. O mito da mulher serve para apagar a mulher real, concreta. Transforma-a em símbolo, nunca em ser humano completo.
Por outro lado, o mito do masculino — esse mesmo que coloca o homem no pedestal de sujeito, criador, conquistador — também aprisiona. Em um primeiro momento, pode parecer um privilégio. E socialmente, em muitos aspectos, é. Mas manter-se nesse lugar exige constante reafirmação. O homem precisa provar o tempo todo sua virilidade, sua força, sua autonomia. Não pode vacilar, nem mostrar vulnerabilidade. Se a mulher é emoção, ele deve ser razão. Se ela é cuidado, ele deve ser controle.
Essa armadilha obriga o homem a reprimir partes de si: a sensibilidade, a dúvida, o medo, o desejo de afeto e conexão. Ele é empurrado para longe da ternura, do doméstico, da escuta porque tudo isso foi “delegado” à mulher. O resultado é o isolamento.
No quadrinho Pontos Fracos, publicado no Brasil no ano de 2024 pela Editora Nemo, Adrian Tomine constrói ali um retrato seco, irônico e profundamente humano sobre a masculinidade em colapso. A história gira em torno de Ben Tanaka, um homem cínico, inseguro, emocionalmente frustrado, alguém que parece constantemente descontente com tudo ao seu redor, inclusive consigo mesmo. Ele namora Miko, uma jovem asiática-americana, politicamente engajada, que aos poucos se distancia dele, cansada de seu olhar crítico, sua passividade e, principalmente, de seus preconceitos disfarçados de ironia.
Há um abismo de comunicação entre eles, que cresce a cada página, feito de sarcasmo, mágoa e silêncios. Ben diz pouco, mas o que diz revela muito: ele se sente deslocado, frustrado, e tem dificuldades em lidar com sua identidade como homem asiático-americano, muitas vezes tentando se aproximar de mulheres brancas como forma de validação — algo que o próprio quadrinho nunca julga abertamente, mas deixa exposto com frieza cirúrgica. Quando Miko decide se mudar temporariamente para Nova York para trabalhar em uma organização de cinema, o relacionamento entra num limbo.
Tomine é um quadrinista preciso. Poucos autores conseguem abordar temas tão densos com tamanha concisão. Pontos Fracos tem apenas 112 páginas e cada uma delas é cuidadosamente construída. Antes do início do quadrinho, o autor mostra os perfis dos personagens principais, como se dissesse: “são eles que importam aqui”. Ao longo da obra, os quadros são quase sempre fechados, focados nos personagens. Poucos cenários, quase nenhum plano aberto — o que interessa é o que acontece dentro deles, nos silêncios, nos olhares, nas falhas de comunicação.

Visualmente, Tomine é econômico, mas sua arte é expressiva. Ele é herdeiro de nomes como Daniel Clowes e Jaime Hernandez, mas também de um tipo de realismo mais literário. Não há explosões, nem exageros. Sua narrativa é feita de olhares desviados, pausas desconfortáveis, distâncias entre corpos. Cada quadro parece meticulosamente calculado para transmitir o desconforto emocional dos personagens. Tudo parece normal — e essa normalidade é justamente o que escancara o vazio existencial de Ben.
No fundo, Pontos Fracos é quase um estudo de caso daquilo que Simone de Beauvoir descreveu há mais de 70 anos: o homem moldado por um mito que exige força, distanciamento, controle — e que, por isso mesmo, se quebra por dentro. Ben Tanaka não é um vilão, tampouco um herói. Ele é um homem comum, tentando habitar um papel que já não faz sentido, mas do qual também não consegue se libertar. Ele é o produto de uma cultura que ensinou que expressar emoção é fraqueza, que demonstrar interesse genuíno por alguém é submissão, que engajamento é tolice e que amor é uma armadilha.
Simone de Beauvoir nos ajuda a entender que o mito do masculino não liberta o homem — ele o sufoca. E Adrian Tomine, com sua arte contida e sua narrativa precisa, traduz essa verdade para o campo das histórias em quadrinhos com rara sensibilidade. Pontos Fracos não traz soluções nem grandes reviravoltas. O que ele oferece é um espelho: o retrato de um homem tentando se sustentar numa masculinidade que já não se sustenta.





