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Alack Sinner | A arte dos pecadores

Em 1937, o regime nazista abriu em Munique a Exposição de Arte Degenerada (Entartete Kunst). Organizada pelo Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels, a mostra pretendia demonstrar ao público alemão o que seria a “decadência cultural” do Ocidente. Para isso, foram reunidas mais de 600 obras confiscadas de museus alemães, assinadas por artistas como Paul […]

Em 1937, o regime nazista abriu em Munique a Exposição de Arte Degenerada (Entartete Kunst). Organizada pelo Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels, a mostra pretendia demonstrar ao público alemão o que seria a “decadência cultural” do Ocidente. Para isso, foram reunidas mais de 600 obras confiscadas de museus alemães, assinadas por artistas como Paul Klee, Wassily Kandinsky, Marc Chagall, Emil Nolde, Max Ernst e George Grosz.

A forma como essas obras foram apresentadas já revelava o tom farsesco do evento, quadros pendurados de maneira torta e amontoada, esculturas expostas sem qualquer cuidado, frases insultuosas escritas nas paredes para ridicularizar o conteúdo das peças. A intenção era clara, não se tratava de uma exposição para apreciar, mas de um tribunal visual. O público era convidado a rir, a desprezar e a confirmar a narrativa de que aquela arte representava doença, corrupção e ameaça à ordem social.

Enquanto isso, em outra ala da cidade, acontecia a Grande Exposição de Arte Alemã, cuidadosamente organizada para exaltar a estética oficial do regime. Ali, predominavam as representações de corpos arianos, soldados robustos e cenas rurais idílicas, todas dentro de um estilo neoclássico e monumental. O contraste entre as duas mostras buscava ser didático. De um lado a suposta degeneração, de outro, a pureza e a grandeza da verdadeira arte alemã.

No entanto, o efeito foi paradoxal. A Exposição de Arte Degenerada atraiu um público muito maior do que o esperado. O que deveria ser uma campanha de ridicularização acabou funcionando como vitrine involuntária da força da arte moderna. Mesmo sob insultos, aquelas obras revelavam a potência criativa que o regime tentava sufocar.

Quase quatro décadas depois, em 1975, surge nos quadrinhos uma obra também marcada pela marginalidade e pela crítica, Alack Sinner, criação dos argentinos exilados José Muñoz (desenhos) e Carlos Sampayo (roteiros). A série nasceu nas revistas europeias e se tornaria um dos marcos dos quadrinhos.

O personagem central, Alack Sinner, é um ex-policial de Nova York que abandona a corporação após se decepcionar com a corrupção e a violência que a permeiam. Ao tornar-se detetive particular, não encontra redenção, mas apenas novos fracassos. Suas investigações raramente chegam a uma solução clara. Muitas vezes, os casos se desfazem no meio da narrativa, como se a vida fosse mais complexa do que qualquer enigma a ser resolvido.

Mais importante do que os crimes é o ambiente que cerca Sinner. Nas ruas escuras e nos bares esfumaçados, Muñoz e Sampayo retratam uma galeria de personagens marginalizados; imigrantes explorados, negros perseguidos pelo racismo, prostitutas esquecidas, sindicalistas reprimidos, exilados políticos que carregam a memória das ditaduras latino-americanas. Ao acompanhar essas figuras, Sinner se torna testemunha de um mundo onde a justiça não existe e a dignidade só pode ser preservada através da resistência cotidiana.

O traço de José Muñoz reforça essa atmosfera de exclusão. Inspirado pelo expressionismo, seu desenho é marcado por contrastes violentos de preto e branco, figuras distorcidas, ambientes que parecem sempre à beira do colapso. Não há espaço para a clareza ou para a beleza clássica. O estilo gráfico, assim como as histórias de Sampayo, reflete o olhar dos que vivem à margem, em constante tensão com a ordem oficial.

O uso radical do preto e branco cria um jogo de sombras em que rostos e corpos aparecem fragmentados, muitas vezes mais sugeridos do que definidos. Essa estética traduz visualmente o sentimento dos personagens, eles parecem engolidos pela própria cidade, reduzidos a silhuetas que lutam para existir em meio à escuridão. Ao mesmo tempo, essa escolha estilística coloca o leitor em contato direto com a dureza do mundo narrado, sem concessões à beleza convencional ou à harmonia. A arte não apenas ilustra a história, mas encarna a marginalidade, tornando-se o próprio gesto de insubmissão contra a ordem visual dominante.

O sobrenome do protagonista, “Sinner”, sempre me causou fascínio. “Pecador”, em inglês, carrega um peso simbólico, não é apenas um nome, mas um destino, uma marca inscrita no personagem desde sua primeira aparição. Ao chamá-lo assim, Muñoz e Sampayo não apenas batizam um detetive, mas lhe dão uma condição existencial. Alack Sinner é, de certa forma, condenado a caminhar sempre às margens, consciente de seus erros e limitações, e incapaz de se encaixar em um mundo que exige pureza, sucesso ou heroísmo. Esse sobrenome o distancia radicalmente dos heróis convencionais do gênero policial, que costumam ser detetives brilhantes ou justiceiros implacáveis. “Sinner” é, antes de tudo, humano demais, frágil, falível, um pecador que, justamente por isso, enxerga e acolhe os pecados alheios.

Ao colocarmos lado a lado a Exposição de Arte Degenerada e Alack Sinner, vemos que em ambos os casos, o poder político e social define quem merece existir dentro da norma e quem será condenado como degenerado, fracassado ou pecador. Na Alemanha nazista, a marginalização recaiu também sobre artistas que ousaram romper com a tradição. Nos quadrinhos dos exilados Muñoz e Sampayo, são os excluídos da metrópole capitalista que carregam esse fardo.

A exclusão, no entanto, revela sua face paradoxal. Ao tentar silenciar, o poder acaba revelando justamente a vitalidade do que rejeita. A exposição nazista transformou a “arte degenerada” em símbolo da resistência cultural frente à barbárie. Já Alack Sinner, ao dar protagonismo aos esquecidos, subverte o gênero policial e transforma o fracasso em denúncia. O que é marginalizado passa a ocupar o centro, e o que é chamado de degenerado torna-se a verdadeira memória da dignidade humana.

Assim, tanto a mostra de Munique em 1937 quanto os quadrinhos dos anos 1970 revelam que o lugar do excluído não é o silêncio, mas a resistência. Na arte, aquilo que o poder rejeita é justamente o que permanece vivo, denunciando a violência e afirmando, contra todas as tentativas de apagamento, a força do humano.

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