Gustav Klimt é um dos artistas mais conhecidos do fim do século XIX e início do século XX. Nascido em Viena, capital do Império Austro-Húngaro, cresceu em um momento em que a cidade se consolidava como o grande centro cultural da Europa Central. A atmosfera vienense da época, marcada tanto pela prosperidade burguesa quanto pelas tensões sociais e intelectuais, favoreceu o surgimento de movimentos artísticos e literários que questionavam a tradição acadêmica e propunham novos modos de pensar a arte. Nesse cenário, Klimt se destacou como um dos líderes da chamada Secessão de Viena, grupo que defendia a liberdade criativa e a abertura da arte a linguagens modernas, afastando-se da rigidez das academias.
Gustav Klimt por Moriz Naehr.
A obra de Klimt se insere no Simbolismo e no Art Nouveau, mas ultrapassa facilmente os limites dessas classificações. Ele se tornou célebre por criar imagens que combinam sensualidade, espiritualidade e ornamentação extrema. A chamada “fase dourada”, iniciada no começo do século XX, é o período mais lembrado de sua produção. Nela, o artista utilizava folhas de ouro aplicadas sobre a tela, criando superfícies que brilham como mosaicos bizantinos.
O Beijo (1907–1908)
Obras como O Beijo (1907–1908) e Retrato de Adele Bloch-Bauer I (1907) exemplificam esse momento. Os corpos e rostos, embora cuidadosamente pintados, acabam por se dissolver em padrões ornamentais, quase como se o conteúdo fosse apenas um pretexto para o jogo de linhas e brilhos.
Em Klimt, o estilo adquire protagonismo diante do conteúdo. O artista recorria frequentemente a temas clássicos, mitologia, alegorias femininas, narrativas bíblicas, mas não era a “história contada” que importava. O impacto vinha da atmosfera visual criada. Judith I (1901), por exemplo, retoma o tema tradicional da mulher bíblica que decapita Holofernes, mas na tela de Klimt a tensão dramática da cena é quase anulada pelo fascínio erótico e pelo ouro que envolve a figura. Mais do que narrar, a pintura seduz e envolve o olhar.
Judith I (1901)
Ao privilegiar o estilo, Klimt dialogava com um momento vienense de busca pela intensidade estética. Viena era também o berço da psicanálise de Freud, onde o inconsciente e o desejo ganhavam centralidade. Klimt se insere nesse contexto como alguém que expõe mais os efeitos sensoriais e emocionais da arte do que explicações conceituais. O conteúdo, quando aparece, funciona como moldura necessária para que o verdadeiro protagonista, a ornamentação, a atmosfera visual, o excesso.
Klimt alcançou enorme sucesso ainda em vida, mesmo após enfrentar resistência inicial de setores mais conservadores da crítica. Suas obras conquistaram tanto colecionadores privados quanto instituições públicas. Retratos como o de Adele Bloch-Bauer e painéis monumentais garantiram prestígio e projeção internacional, tornando-o uma das figuras centrais do Art Nouveau europeu. Esse reconhecimento consolidou sua posição como artista capaz de unir sofisticação estética e apelo popular.
Principais personagens em suas versões repaginadas para o universo absoluto da DC Comics.
Em 2024, a DC Comics criou o Absolute Universe, iniciativa que buscava reimaginar seus principais heróis. O objetivo do selo era apresentar versões dos personagens sem os recursos tradicionais, colocando-os em situações-limite e oferecendo maior liberdade criativa a escritores e artistas. Superman apareceria sem lar, Mulher-Maravilha teria origens alteradas e Batman seria um jovem sem fortuna, enfrentando Gotham de forma mais direta e crua.
Impulsionado por uma forte divulgação e pela curiosidade em torno da reinvenção de heróis icônicos, o selo alcançou grandes vendas iniciais e gerou intenso debate entre críticos e fãs. Mesmo com avaliações divididas quanto à profundidade narrativa, a força visual das histórias e o impacto de reposicionar personagens clássicos garantiram ao projeto destaque comercial.
Capa da edição número 1 desenhada por Nick Dragotta.
Dentro desse universo, o título mais emblemático é Absolute Batman, lançado em outubro de 2024, com roteiro de Scott Snyder e arte de Nick Dragotta. A série apresenta Bruce Wayne como um jovem de 24 anos, trabalhando como engenheiro civil, sem a fortuna e sem a proteção da mansão Wayne. Alfred, tradicionalmente figura paterna, surge como agente secreto com motivações próprias. Já os vilões, apesar de alterações iniciais, mantêm seus papéis clássicos.
Escrevo este texto após ler a edição número 12 da série. Não darei spoilers, mas, após um ano de publicação, já é possível afirmar que o roteiro de Snyder se mostra limitado. Em vez de aproveitar a oportunidade de criar uma nova leitura do personagem e dos que o cercam, de questionar privilégios ou explorar moralidades alternativas, a narrativa permanece presa a conflitos já conhecidos. O que se destaca é o exagero físico dos personagens. Batman aparece mais musculoso e imponente, enquanto os vilões são caricaturalmente intensos em suas proporções e traços. Esse foco no corpo e na imagem extrema substitui a chance de uma narrativa mais reflexiva.
Página que mostra a nova versão do vilão Bane, desenhada por Nick Dragotta.
Gotham, embora ainda caótica, torna-se pano de fundo secundário, pouco explorada como espaço de debate e crítica. A dramaticidade recai quase inteiramente sobre os corpos dos personagens e sobre sua presença visual. O impacto se dá mais pelo físico e pelo exagero das figuras do que por qualquer reinvenção conceitual. Assim, a série enfatiza o estilo sobre o conteúdo, repetindo uma lógica semelhante à observada em Klimt.
A arte de Nick Dragotta é o elemento mais marcante de Absolute Batman. Conhecido por seu trabalho em East of West, o artista traz para Gotham um estilo dinâmico, com linhas exageradas e composições carregadas de energia. Sua representação dos personagens é marcada pelo excesso. Corpos largos, músculos irreais e expressões intensas, que parecem sempre à beira da explosão. Essa escolha estética não apenas reforça a dramaticidade da narrativa, mas também cria um universo visual em que a presença corporal é mais importante do que qualquer diálogo ou motivação psicológica.
Página desenhada por Nick Dragotta.
A comparação entre Klimt e Absolute Batman evidencia uma coincidência notável entre dois campos distintos da arte. Klimt utiliza narrativas tradicionais como suporte para criar experiências sensoriais dominadas pelo ouro, pelos arabescos e pela ornamentação extrema. Snyder e Dragotta mantêm o núcleo do herói e dos vilões, mas concentram-se no exagero físico e visual, tornando a presença corporal dos personagens o elemento central da obra. Em ambos os casos, o conteúdo permanece secundário, enquanto o estilo domina e seduz o espectador.
Escrevo este texto buscando me distanciar dos meus vieses, dando prioridade ao sucesso comercial de Batman Absoluto em vez da avaliação da qualidade do material. Confesso que esse tipo de gibi está longe de ser o que mais me atrai, mas, como crítico, é necessário olhar além das preferências pessoais e compreender a obra como um fenômeno cultural. Não quero, contudo, sugerir que os conteúdos de Klimt sejam vazios, ao contrário, suas pinturas carregam significado e complexidade, mas ambos os casos funcionam como pontos de partida para refletirmos sobre como o estilo e o exagero capturam a atenção e moldam a experiência do público.
Painel desenhado por Nick Dragotta.
O sucesso de Klimt e do Absolute Batman revela que, muitas vezes, não somos atraídos apenas pelo que a obra narra, mas pela maneira como ela se apresenta. O dourado que envolve figuras em mosaicos ou os corpos exagerados que dominam as páginas dos quadrinhos funcionam como apelos visuais. Cada detalhe, ornamento ou proporção extrema comunica emoções, intensidades e presenças, mesmo quando o enredo segue caminhos conhecidos. Essas imagens nos marcam, despertam fascínio e curiosidade, e nos convidam a olhar mais atentamente. O exagero, nesse sentido, deixa de ser mero recurso estético e se transforma em uma linguagem própria, capaz de envolver o espectador, provocar sensações e tornar a experiência inesquecível. Ele nos mostra que a arte não se limita à história contada, também se faz presente no brilho, na forma e no impacto visual que permanece na memória.


