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Contagem de corpos | O excesso como método

Em 2024, o MASP abriu suas portas para, pela primeira vez no Brasil, apresentar uma exposição com obras de Francis Bacon. Com curadoria de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey, “A Beleza da Carne” percorreu as camadas mais cruas, sensíveis e perturbadoras do corpo humano. Esse corpo que Bacon torce, desfaz e reconstrói como matéria viva […]

Em 2024, o MASP abriu suas portas para, pela primeira vez no Brasil, apresentar uma exposição com obras de Francis Bacon. Com curadoria de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey, “A Beleza da Carne” percorreu as camadas mais cruas, sensíveis e perturbadoras do corpo humano. Esse corpo que Bacon torce, desfaz e reconstrói como matéria viva de angústia, desejo e silêncio.

Mais de vinte pinturas, vindas de instituições como a Tate, MoMA, Metropolitan e outras, foram exibidas em uma galeria pintada de verde, uma cor escolhida para acentuar o confronto entre beleza e brutalidade. O título da mostra, retirado de uma reflexão do próprio artista ao observar pedaços de carne em um açougue, já antecipava o tom da experiência; um fascínio pelo que há de mais elementar e exposto em nós, a carne, o sangue, o impulso, a dor.

Ficou evidente para os visitantes que a curadoria quis iluminar um aspecto pouco explorado pela crítica, Bacon era um artista queer, e o MASP inseriu essa dimensão no ciclo dedicado às histórias da diversidade LGBTQIA+. Corpos masculinos dilacerados e apaixonados, figuras fundidas em desejo e solidão, atmosferas carregadas por uma tensão entre erotismo e culpa. Tudo se articulava para revelar um artista que transformava o íntimo em cena pública.

A carne, em Francis Bacon, não é mero detalhe anatômico, é o núcleo da pintura. Ela pulsa, contorce, apodrece e resiste. Em suas obras, a carne está sempre à beira do colapso, como se o corpo fosse uma prisão mole, prestes a falhar. É o que vemos em peças como Figure with Meat ou Two Figures with a Monkey.

Bacon não pinta a carne como símbolo de beleza clássica, mas como evidência do humano em estado bruto. Em Man at a Washbasin, por exemplo, o corpo é desfeito, sem rosto, sem espelho. Uma figura solitária dobrada sobre si mesma, como se tentasse se livrar do próprio peso. A imagem é silenciosa e violenta. Não há sangue, mas há sofrimento. Não há grito, mas há uma tensão que ecoa como um rugido interno.

Mesmo nos Studies for Self-Portrait, o artista se representa em constante mutação. O rosto é sempre outro, como se o tempo esculpisse a carne com dedos grossos. O autorretrato, para Bacon, não é espelho, é dissecação. Ele se pinta não para se reconhecer, mas para se estranhar. Cada dobra de pele, revela não apenas a fragilidade do corpo, mas também a instabilidade da identidade.

Eu nunca imaginei que escreveria isso, mas os quadros, e até o nome da exposição do MASP, de Francis Bacon não saíam da minha mente enquanto lia o quadrinho Contagem de Corpos, de Kevin Eastman e Simon Bisley.

Kevin Eastman é co-criador do fenômeno Tartarugas Ninja e uma figura central dos quadrinhos independentes dos anos 1980 e 1990, conhecido por seu estilo direto e visceral. Já Simon Bisley é um artista britânico célebre por seu traço musculoso e exagerado, que mistura brutalidade e humor com uma energia caótica inconfundível. Seu trabalho em títulos como Lobo e Sláine o tornou um ícone do quadrinho norte-americano. Juntos, Eastman e Bisley criaram Contagem de Corpos como um manifesto ao excesso, à liberdade gráfica e à pura selvageria visual.

Desde a primeira página, o que se abre diante dos olhos é um delírio gráfico, um caos onde cada explosão, cada tiro, cada grito parece ter sido pintado com tinta e fúria. Eastman se despe de qualquer pretensão de moralidade ou equilíbrio e mergulha, junto de Bisley, em um mundo saturado de sangue, testosterona e insanidade.

No centro dessa loucura estão Rafael e Casey Jones, dois personagens que são centelhas do descontrole. Não são heróis, são corpos em movimento, pura ação encarnada. Eles não enfrentam o mal com honra, mas com porradas, facadas e sarcasmo. E Bisley, com seu traço distorcido, musculoso, quase um grunhido visual, dá vida a esse universo como se cada quadro fosse uma batalha entre arte e anarquia.

Não pretendo focar na história do quadrinho, até porque não acredito que ela seja o ponto central da obra. A narrativa, com seus clichês absurdos e personagens rasos, funciona como desculpa para criar um quadrinho de impacto gráfico poderoso. As páginas parecem pulsar. Cada rosto se estica como carne viva. Cada carro capotado vira uma coreografia de destruição. Há algo de interessante nessa violência, um exagero que deixa de ser simplesmente brutal para se tornar quase cômico, quase sublime.

Embora à primeira vista pareçam habitar universos distintos, Contagem de Corpos e a obra de Francis Bacon podem ser conectados através da fascinação pelo corpo em colapso. Ambos mergulham no físico como espaço de drama, violência e transformação, onde o corpo não é apenas forma, mas campo de tensão emocional, política, existencial.

Bacon pintava a carne como angústia, explorava figuras contorcidas, dilaceradas, afundadas em si mesmas, como se a própria identidade escorresse junto com o sangue e os ossos. Seus personagens não são retratos, são estados de espírito encarnados, sempre à beira do desmanche. Em Contagem de Corpos, o corpo também grita, explode, se dobra, se estilhaça. Mas aqui o gesto é mais punk, mais carnal no sentido pop da palavra. Bisley desenha cada movimento como rastro, impacto e ferida.

Além disso, tanto Bacon quanto Eastman/Bisley parecem adotar o excesso como método. Bacon via beleza no grotesco, Bisley transforma o grotesco em prazer gráfico. E ambos tratam a anatomia não como algo fixo, produzem uma pintura não para representar, mas para desfigurar e, assim, revelar.

É como se Contagem de Corpos fosse uma versão pop-metal, suja e berrada do mesmo impulso trágico que move as figuras de Francis Bacon, a vontade de mostrar o que há por baixo da pele, não para entender, mas para sentir. Violentamente.

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