Loja Monstra

O quadrinho virou fast fashion | E o leitor virou consumidor descartável

No dia 10 de novembro, o canal Fora do Plástico publicou um vídeo em seu perfil no YouTube apresentando uma provocação relevante. Para aqueles que não o assistiram, a recomendação permanece, mas, para não perdermos o fio da meada, ofereço aqui um resumo: a questão central levantada pelo canal diz respeito à constatação, recorrente entre […]

No dia 10 de novembro, o canal Fora do Plástico publicou um vídeo em seu perfil no YouTube apresentando uma provocação relevante. Para aqueles que não o assistiram, a recomendação permanece, mas, para não perdermos o fio da meada, ofereço aqui um resumo: a questão central levantada pelo canal diz respeito à constatação, recorrente entre diversas lojas de quadrinhos, de que a prática dos descontos de pré-venda, tradicionalmente em torno de 30% no mercado brasileiro, tornou-se inviável para pequenos lojistas.

Pouco tempo depois, uma das editoras de quadrinhos mais proeminentes do país publicou um vídeo expandindo essa discussão. Embora considere pertinentes vários dos pontos mencionados pelos três sócios e editores da Pipoca & Nanquim, percebo que um dos problemas estruturais do nosso cenário permanece sistematicamente relegado ao segundo plano quando se debate a situação do mercado nacional.

A revista Zap Comix, lançada em 1968 por Robert Crumb, constitui um dos marcos inaugurais do movimento dos underground comix nos Estados Unidos. Seu surgimento está diretamente ligado às tensões culturais do final da década de 1960, período em que a contracultura, os protestos civis e a contestação ao establishment transformaram profundamente as formas de expressão artística. Enquanto o mercado de quadrinhos tradicional permanecia rigidamente controlado pelo Comics Code Authority, que impunha limites severos a temas considerados adultos ou politicamente sensíveis, a Zap Comix oferecia um espaço radicalmente livre, no qual o experimentalismo estético e a irreverência temática podiam florescer. A revista respondia, assim, à necessidade de um meio capaz de refletir as inquietações sociais e subjetivas da época, indo além da função normativa que dominava as grandes editoras.

A Zap Comix reuniu alguns dos nomes mais emblemáticos do underground norte-americano, formando um coletivo que redefiniu as possibilidades estéticas e temáticas dos quadrinhos independentes. A influência da revista estendeu-se para além desse núcleo inicial, alcançando autores das décadas seguintes, como Daniel Clowes, Alison Bechdel, Peter Bagge e Charles Burns, bem como diversos quadrinistas internacionais que circularam por vias alternativas. Esses artistas encontraram na Zap Comix um modelo de autonomia criativa, irreverência discursiva e insubordinação estética, demonstrando como o movimento inaugurado pela publicação redefiniu as condições de produção, circulação e legitimação dos quadrinhos autorais no cenário global.

Inspirada por esse gesto de ruptura, a revista Métal Hurlant, lançada em 1975, surge em um contexto de saturação do mercado francês de quadrinhos, então dominado por publicações consolidadas, mas pouco abertas à experimentação estética e narrativa. Nesse cenário, a ficção científica tinha dificuldades para sair de abordagens infantis, e o campo editorial resistia a propostas que buscassem renovar seu imaginário visual e temático. É nesse ambiente cultural, marcado pela contracultura e por uma demanda crescente por autonomia criativa, que Moebius, Philippe Druillet e Jean-Pierre Dionnet fundam, em 1974, a editora Les Humanoïdes Associés, concebida como um espaço de ruptura com o conservadorismo das revistas tradicionais. A Métal Hurlant nasce desse projeto, combinando liberdade formal, temas adultos e uma aproximação deliberada com outras artes contemporâneas, incorporando desde o início uma estética pautada pela ficção científica madura, pelo desenho psicodélico e por narrativas que desafiavam convenções estabelecidas.

O impacto da Métal Hurlant foi imediato e ultrapassou as fronteiras francesas, alcançando o mercado norte-americano por meio da revista Heavy Metal e influenciando diretamente a estética do cinema de ficção científica. Artistas encontraram na publicação um repertório imagético e narrativo que expandiu as possibilidades de representação do futuro, do corpo e do espaço. Ao redefinir os limites temáticos e formais da BD, a revista contribuiu decisivamente para consolidar os quadrinhos como prática artística adulta e experimental, legitimando-os no campo cultural mais amplo. Seu legado permanece fundamental não apenas para a ficção científica, mas para a compreensão contemporânea dos quadrinhos como um meio capaz de articular reflexão estética, crítica social e inovação visual.

A criação de Love and Rockets está profundamente ligada ao surgimento da editora Fantagraphics como força central na consolidação dos quadrinhos independentes norte-americanos no início da década de 1980. Os irmãos Gilbert, Jaime e Mario Hernandez produziram de forma independente em 1981, uma primeira edição caseira da revista, fotocopiada e distribuída localmente na Califórnia. Esse material chamou a atenção de Gary Groth e Kim Thompson, editores da Fantagraphics, que buscavam autores capazes de expandir as fronteiras do meio e legitimar a produção autoral em um mercado ainda dominado por super-heróis. Impressionados com a combinação inédita de influências punk, latinas e feministas, os editores convidaram os Hernandez a republicar o número inaugural e transformar o projeto em uma série contínua, lançada oficialmente em 1982.

A parceria consolidou-se rapidamente como um dos eixos do movimento alternativo. A Fantagraphics oferecia liberdade artística total, ausência de censura editorial e um modelo de publicação estruturado para priorizar a visão autoral. Essa estrutura permitiu que Love and Rockets se desenvolvesse de forma singular, combinando elementos realistas, aspectos do realismo mágico latino-americano, ficção científica pós-punk e narrativas enraizadas em experiências culturais dos latinos. Enquanto Jaime criava o universo de Locas, centrado em Maggie e Hopey, Gilbert desenvolvia Palomar, uma narrativa multigeracional ambientada em uma vila latino-americana que se tornaria uma das obras mais influentes dos quadrinhos modernos.

O sucesso crítico da saga estabeleceu um precedente para outros autores da Fantagraphics, como Dan Clowes, Charles Burns e Chris Ware, consolidando a editora como a principal casa dos quadrinhos alternativos nos EUA.

A produção de revistas como Métal Hurlant, Zap Comix e Love and Rockets evidencia um lugar comum, todas emergem de um gesto consciente de contestação do mercado tradicional de quadrinhos e de seus mecanismos de legitimação. Seus criadores, atuando em contextos nos quais a indústria privilegiava fórmulas narrativas previsíveis, modelos gráficos padronizados e um horizonte estritamente comercial, optaram por desviar-se dessas estruturas e afirmar uma concepção alternativa de autoria. Essa recusa implicava em abdicar da segurança do lucro imediato em favor da construção de espaços de experimentação formal e temática. Ao negar os limites impostos pelo mainstream, esses autores abriram caminhos para novas possibilidades narrativas e identitárias dentro do campo.

Paradoxalmente, ao rejeitarem as estruturas mercadológicas dominantes, essas iniciativas contribuíram para reformular o próprio mercado que buscavam questionar. A longo prazo, a existência dessas revistas introduziu novos parâmetros de valor, deslocando o foco da produção seriada de massa para obras autorais de circulação limitada, mas de impacto cultural duradouro. O que inicialmente parecia uma escolha anti-comercial tornou-se fundamento para um mercado independente robusto, que sustenta boa parte da diversidade estética presente nos quadrinhos contemporâneos. Assim, a recusa ao mainstream lançou as bases para a ampliação do próprio conceito de quadrinhos e ajudou a estruturar o ecossistema cultural atual.

Você pode estar se perguntando o que isso tem a ver com a discussão sobre o vício do leitor em descontos, levantada no vídeo do Fora do Plástico?

Não tratarei aqui dos meandros do mercado; não sou lojista, e minha experiência editorial é muito mais voltada para livros do que para quadrinhos. Quero, antes, discutir um ponto crucial frequentemente ignorado por lojistas e editoras.

Há algum tempo comecei a colecionar bonecos. Sempre fui aficionado por figuras de ação e, vivendo em São Paulo, fui introduzido graças à loja UGRA, a uma cena inteira de produtores independentes. Comprar bonecos feitos à mão despertou em mim o desejo de adquirir peças industriais, especialmente da linha Marvel Legends da Hasbro, por ser fã dos X-Men. A dinâmica da coleção de bonecos é simples: compra-se para admirar. Bonecos não funcionam como livros, que mobilizam chaves interpretativas ou críticas acadêmicas. Eles são a expressão de um gosto.

Essa lógica não é distinta da que vemos em mercados como fast fashion. A Renner, por exemplo, produz calças de baixa durabilidade para que o consumidor compre, use e substitua rapidamente. Tais produtos não são feitos para durar, muito menos para estimular reflexão crítica. O mercado opera pela lógica do consumo repetitivo: compre, use, descarte e compre novamente.

Essa tem sido também a dinâmica do mercado de quadrinhos no Brasil. Nunca se lançou tanto e nunca se discutiu tão pouco. A lógica da novidade foi estabelecida pela Amazon, que, como todo mercado orientado pelo capital, precisa vender mais a cada dia, mês e ano. A avidez pelo consumo colecionável não deixa espaço para o pensamento. Pensar exige tempo; produzir reflexão demanda lentidão. É o oposto do que esse sistema deseja.

Essa dinâmica torna ainda mais evidente a relevância histórica das lojas de quadrinhos na constituição de um ecossistema cultural mais lento, mediado e reflexivo. Em contraste com plataformas digitais, esses espaços atuavam como curadorias informais, capazes de introduzir obras que escapavam à lógica da novidade permanente e de fomentar conversas que reinscreviam o quadrinho em seus contextos históricos, artísticos e políticos. O encerramento desses espaços implica também a perda de uma circulação crítica, sustentada por temporalidades densas e menos subordinadas ao regime efêmero do consumo acelerado.

O resultado é um cenário em que editoras lançam quadrinhos, muitos deles frutos diretos das sementes plantadas pelos movimentos analisados no início deste texto, mas deixam de trabalhar seus próprios catálogos. Entre editoras que também atuam como meios de comunicação, observa-se uma prática reiterada de comentar apenas os lançamentos, relegando cada obra, após sua chegada ao mercado, ao limbo algorítmico da Amazon. Os canais de YouTube reproduzem essa mesma lógica: discutem o lançamento, não o acervo. Trata-se o quadrinho, que deve ser associado à elaboração crítica, como um item descartável de consumo rápido, não muito diferente da “calça da semana” da Renner.

Quando introduzimos o autor nesse debate, o cenário adquire contornos ainda mais complexos. Rogério de Campos, editor da Veneta e figura central na história do mercado editorial brasileiro, observou, em uma discussão na loja Comic Boom sobre o papel destrutivo da Amazon no setor de quadrinhos, que “o mercado editorial brasileiro está aquém dos quadrinistas brasileiros”. Concordo totalmente com Rogério, basta romper os limites do “bairro” de recomendações produzidas por canais e algoritmos para perceber a existência de inúmeros autores nacionais com potencial equivalente, ou mesmo superior, ao de muitos artistas de outros lugares do mundo. No entanto, esse potencial permanece subaproveitado, pois os autores precisam acumular múltiplas funções e tarefas apenas para viabilizar a publicação de seus próprios trabalhos.

É comum ouvirmos editores afirmarem que o quadrinho nacional não vende, e não se trata aqui de negar essa percepção, mas de compreender seus motivos. Um dos fatores estruturais envolvidos é a escassez de debate qualificado sobre quadrinhos, sejam nacionais ou internacionais, no Brasil. O consumidor permanece perdido no labirinto de seus próprios gostos, enquanto o algoritmo de recomendações da Amazon faz pouco ou nenhum esforço para apresentar obras que escapam da bolha de conforto. Os canais de YouTube igualmente evitam discutir quadrinhos nacionais, pois, com um público reduzido, a visibilidade diminui, e com menor visibilidade há menos engajamento. Nesse ciclo vicioso, sufocamos nossos potenciais Crumbs, Wares e Hernandez. As lojas de quadrinhos tornam-se, assim, um dos últimos espaços capazes de resistir a esse cenário, em uma lógica dominada pelo capital, torna-se cada vez mais difícil direcionar atenção e, em certa medida, “financiar”, a rebeldia que emerge dos menores.

O predomínio do desconto não é, portanto, o problema em si, mas o sintoma de um mercado que deixou de discutir quadrinhos e passou a privilegiar uma cultura de colecionismo pouco interessada em pensamento crítico ou na construção de uma cena relevante, seja nacional, seja internacional. Nesse contexto, o mercado brasileiro atual não oferece condições para o surgimento de movimentos semelhantes a Zap Comix, Métal Hurlant ou Love and Rockets. Há algo de profundamente paradoxal em observar que as editoras que hoje publicam os frutos desses movimentos históricos fazem muito pouco para sustentar a “rebeldia” que os originou. De igual modo, é desalentador perceber que influenciadores, dotados de poder considerável para moldar comportamentos, se limitam à lógica do lançamento, renunciando à tarefa de formar uma massa crítica capaz de compreender que o quadrinho excede a mera acumulação material na estante.

Cenários culturais não se constroem na Amazon; massas críticas não se formam quando o quadrinho é tratado como um produto de fast fashion. O leitor emancipado adquire menos não por restrição, mas porque necessita de tempo para metabolizar a experiência estética e intelectual da leitura. Ao fazê-lo, planta sementes para um mercado que poderá, no futuro, sustentar um ecossistema cultural mais robusto e saudável. O problema reside no fato de que, hoje, consome-se não apenas o fruto, mas também a semente.

Carrinho fechar