O Barroco nasceu no coração de uma Europa em ebulição, onde fé e poder travavam batalhas. A Reforma Protestante havia ferido a autoridade da Igreja Católica, e o Concílio de Trento respondeu com uma ordem clara: a arte deveria emocionar, convencer e reacender a chama da devoção.

Pietro da Cortona, O triunfo da Divina Providência.
O movimento vive da intensidade. Cada obra é um palco onde a dramaticidade é rainha, capturando o momento mais agudo de uma história, como se o mundo respirasse naquele único segundo. A luz não é apenas iluminação; é personagem, entrando em cena em feixes que cortam a escuridão. O movimento serpenteia por linhas curvas e diagonais, guiando o olhar numa dança que nunca para. A ornamentação cobre superfícies como se o vazio fosse uma ameaça, enchendo tudo de detalhes minuciosos.
Toda essa grandeza tinha a intenção, pelo menos em sua origem, de cativar o espectador e convencê-lo de que as narrativas cristãs/católicas eram a verdade a ser seguida.

Peter Paul Rubens, Dois Sátiros
Peter Paul Rubens (1577–1640) foi um dos principais representantes da pintura barroca e um dos artistas mais influentes do século XVII. Ele dominava a criação de movimento e profundidade por meio de diagonais, gestos amplos e organização cuidadosa das cores. Seus temas — entre cenas religiosas, mitológicas, históricas e retratos — ganham monumentalidade e impacto visual. A intensidade barroca aparece na composição dinâmica, na sobreposição de corpos, no contraste entre tons quentes e sombras escuras e no uso estratégico da luz, que destaca músculos, dobras de tecido e expressões, fazendo cada elemento emergir da tela e envolver o espectador.

Antônio Francisco Lisboa, Profeta Isaías, um dos doze esculpidos para o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos.
Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho (1730–1814), é um dos grandes nomes do Barroco brasileiro, especialmente no contexto da escultura e da arquitetura sacra em Minas Gerais. Seu trabalho, marcado por uma expressividade intensa e detalhismo minucioso, reflete perfeitamente os princípios barrocos: movimento, dramatização e emoção. Nas obras de Aleijadinho, como os profetas do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, as figuras ganham vida por meio de gestos amplos e expressões carregadas de tensão, enquanto a composição das cenas cria ritmo e profundidade visual. Ele transformou pedra e madeira em narrativas visuais que não apenas decoram, mas comunicam, emocionam e conduzem o espectador a um encontro direto com o sagrado.

Artemisia Gentileschi, Judite decapitando Holofernes.
Artemisia Gentileschi se destacou por retratar figuras femininas com força, emoção e realismo, algo pouco comum na época. Suas obras, muitas vezes inspiradas em histórias bíblicas, exploram momentos de tensão e conflito, como em Judite Decapitando Holofernes, onde a protagonista é mostrada com determinação e vigor, fugindo do idealismo passivo típico da pintura renascentista. Artemisia combinava o dramatismo barroco, uso intenso de luz e sombra (chiaroscuro), gestos amplos e composição dinâmica, com uma perspectiva íntima e pessoal, frequentemente transmitindo experiências de coragem e resistência. Sua arte não só impressionava visualmente, mas também questionava papéis sociais e a representação feminina na narrativa artística do período.

Capa da edição brasileira publicada pela editora Suma.
Helen de Wyndhorn é um quadrinho que nasceu da colaboração entre o roteirista Tom King, Bilquis Evely e o colorista Matheus Lopes. A história acompanha Helen Cole, que retorna à sua família após a morte do pai, um escritor de contos pulp, e aos poucos descobre os segredos de seus antepassados.
No final da edição brasileira, publicada pela editora Suma, Bilquis comenta suas referências para criar o visual dos personagens e do universo do quadrinho. Entre vários estilos, ela cita a arte gótica, algo visível na imponência do castelo onde vive o avô da protagonista. Mas é possível perceber outras influências dialogando com essa base visual, como o próprio exagero dramático do Barroco.

Arte de capa da edição número 2 publicada nos Estados Unidos pela Dark Horse.
A arte de Bilquis em Helen de Wyndhorn é marcada pela precisão, clareza e composição cuidadosa. A artista carrega seus quadros com diversas informações visuais, fazendo com que o leitor sinta uma intensidade emocional instantânea. Ela constrói ambientes ricos, como a mansão e a floresta ao redor, equilibrando arquitetura, perspectiva e textura, de forma que cada espaço se torne narrativamente funcional e visualmente memorável.
É muito interessante como a quadrinista retrata os espaços vazios ao longo da narrativa. Seus quadros ora se enchem de detalhes, ora são dominados pelo vazio do preto. Essa alternância coexiste, de forma semelhante à arte barroca, conferindo dramaticidade à trama. Quando Helen está cercada por elementos, é preenchida pela exuberância do ambiente; quando a protagonista se sente isolada, esse sentimento se torna evidente na composição, quase gritando para o leitor.

Página da edição 3 do quadrinho,
Além disso, há uma integração forte entre a arte e as cores de Matheus Lopes. Os painéis carregados de Evely fornecem a estrutura, enquanto a paleta variada reforça a atmosfera de mistério e melancolia. O resultado é uma arte que não apenas ilustra, mas molda a experiência, mantendo coesão estética e contribuindo diretamente para a intensidade emocional do leitor.
Toda essa intensidade na arte de Helen de Wyndhorn lembra muito a tensão, o contraste e a emoção que os barrocos buscavam em suas obras. Esse paralelo não se limita à arte do gibi, mas também se expande na narrativa. Helen e seu avô, um aventureiro de um mundo desconhecido, estão sempre em busca do extraordinário. A vida medíocre, moldada pelas nossas leis não os interessa; eles buscam palcos monumentais, batalhas épicas e histórias inesquecíveis.

Página da edição 1 do quadrinho.
A arte de Bilquis Evely e as cores de Matheus Lopes não apenas sustentam a história, mas ampliam seu impacto. Assim como no Barroco, há a intenção clara de envolver o espectador e conduzi-lo por uma experiência intensa, onde cada detalhe conta e cada momento é construído para ser sentido.
Helen de Wyndhorn é um convite, pela narrativa e pela arte, a enxergar a vida pelas lentes do épico. Assim como o barroco, que erguia mundos de esplendor e fantasia, a trama de Tom King nos afasta do banal e valoriza a imaginação capaz de criar histórias intensas e batalhas teatrais. A arte de Bilquis e Matheus sustenta essa visão com maestria, mostrando que a beleza da vida está justamente em justificar nossa existência através daquilo que inventamos. E, se nos cabe criar, por que não buscar em Rubens, Bernini, Aleijadinho, Evely e Lopes o impulso para produzir algo extraordinário?


